POC - Por Outra Comunicação
segunda-feira, 8 de dezembro de 2025
EROSÃO INTERNA DA EXTREMA DIREITA E A REORGANIZAÇÃO DO CAMPO PROGRESSISTA PARA 2026
Finalmente, a extrema direita brasileira atravessa seu período mais crítico desde que ascendeu como força dominante na última década. Os discursos e narrativas mentirosas, rasas, sem qualquer compromisso com a historicidade, com o dialogismo, com a verdade factual e com o compromisso democrático e constitucional resultam no colapso de sua base.
Tanto Júlia Zanatta quanto Nikolas Ferreira, uns dos maiores influenciadores do campo extremista, vêm chafurdando em falas que expõem cada vez mais a fragilidade política, a ignorância e a incapacidade de formular argumentos consistentes. A perda de efetividade das narrativas é contínua e evidente.
As eleições de 2026 se aproximam, e o cenário dificulta ainda mais o reposicionamento estratégico e a comunicação dos extremistas. Não há unidade interna, não há um projeto articulado e, segundo pesquisas recentes, nenhum dos quadros projetados se mostra capaz de disputar com o atual presidente. O racha é explícito e se intensifica à medida que escândalos se acumulam e que o discurso perde poder de mobilização.
A prisão de Jair Bolsonaro se tornou o símbolo máximo da crise institucional. A extrema direita perde seu principal eixo político. Explicitamente, desde 2018, o conservadorismo de direita não se encontrava numa posição tão grave, sem direção e sem expectativa de reorganização.
Enquanto isso, figuras fundamentais para a democracia recebem reconhecimento público e internacional. Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal, foi descrito como celebridade e tratado como herói pelo Financial Times. O colapso narrativo do totalitarismo amplia o contraste político do país, reforçando e fortalecendo as instituições democráticas.
Esse processo se soma à restauração da verdade factual com base no debate público. Depois de anos dominados por fake news e distorções, a reconstituição dos fatos vem enfraquecendo as narrativas construídas desde a Lava Jato, processo que se consolidou como parcial e sem sustentação jurídica. O retorno da factualidade vem fortalecendo o campo progressista e esvaziando a lógica argumentativa da ultradireita.
A tentativa recente de reconstruir a imagem de Bolsonaro por meio de um filme, que ainda está em produção, apenas agravou a crise. A obra, escrita por Mário Frias, ex-secretário da Cultura do governo Bolsonaro, já circula nas redes como motivo de chacota. As notícias denunciam o tom involuntariamente cômico e os relatos de bastidores envolvendo maus-tratos e desorganização. O que deveria funcionar como peça de propaganda se torna mais um exemplo do desgaste simbólico do bolsonarismo.
Esse quadro abre espaço para o fortalecimento estratégico do campo progressista, democrata e dos futuros candidatos. A crise institucional da direita oferece oportunidade real para consolidar propostas sociais, ampliar pautas de proteção de direitos e formular projetos de governo com discurso claro, direto e eficiente. A comunicação pode assumir papel central, como demonstrado pelo atual prefeito de Nova Iorque, Zohar Mandami, cuja equipe utilizou linguagens rápidas, eficientes e objetivas na divulgação de propostas. A simplicidade na apresentação de políticas públicas se mostra eficaz em momentos de desgaste das narrativas opositoras.
A era Bolsonaro se encerra de maneira acelerada e sem sucessor. A extrema direita enfrenta desgaste profundo de imagem, reputação e projeto. Suas lideranças vocalizam discursos frágeis. O desafio da direita radical é reorganizar uma base fragmentada. O do campo progressista é aproveitar esse momento para consolidar comunicação eficiente, propostas robustas e participação política ampliada para 2026.
quarta-feira, 22 de outubro de 2025
A ARTE COMO FERRAMENTA DE CONHECIMENTO E CONTESTAÇÃO FRENTE AOS SIGNOS TOTALITÁRIOS
As críticas e as referências do novo longa de Richard Linklater (Antes do Amanhecer, Jovens, Loucos e Rebeldes, Boyhood) Nouvelle Vague (A Nova Onda), inspirou-me a escrever sobre a importância da transgressão artística para a conjuntura que nos encontramos. A obra é uma homenagem ao movimento que teve como nomes principais Jean-Luc Godard e François Truffaut, que romperam com os padrões tradicionais do cinema industrial da década de 50 e 60, com inovações narrativas, estéticas e conceituais. Já mais contemporâneo, Dogma 95, movimento cinematográfico dinamarquês, veio com uma proposta semelhante de divergência e crítica. Criado por Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, o objetivo era apresentar obras artísticas mais autênticas e realistas, despojando-se de artifícios de produção, como iluminação artificial, cenografia e música.
O cinema, como outras escolas artísticas, deve ser uma oficina de aprendizagem e inovação, sem essas características se torna árido e deixa de ser arte. A grande sacada, seja no cinema, teatro ou literatura é a transcendência, é sair do lugar comum, da acomodação, daquilo que nos prende e nos mantêm inertes.
Cinema é movimento, é transversalidade, não linearidade, é a quebra de métodos estanques e proibitivos, é ir além da verdade factual, utilizando-se de forma criativa da narrativa, que o torna uma ferramenta de conhecimento e contestação.
Ir além daquilo que retrocede e permite que a humanidade se acomode em meio a eventos catastróficos, acreditando na força da “banalidade do mal”, que se utiliza da linguagem e da imagem para criar grandes mentiras, paradoxalmente convincentes. Antes do belicismo, dos genocídios, vem uma construção narrativa enriquecida com imagens, que convencem os idiotas, que a resolução se encontra no apocalipse.
Joseph Goebbels, ministro da propaganda na Alemanha nazista, sabia bem disso, e os arquitetos da destruição da contemporaneidade recriaram e deram uma nova roupagem ao método propagandístico, que foi responsável pelo convencimento de milhares de pessoas, que a catástrofe é uma forma de higienização e construção de um novo mundo, livre daquilo que o deforma.
Hannah Arendt foi bem convincente ao descrever em sua obra Origens do Totalitarismo sobre a convicção de que tudo o que acontece no mundo deve ser compreensível a ponto de nos levar a interpretar a história por meio de lugares-comuns.
Para ela, compreender não significa negar nos fatos o chocante, negligenciar o espanto ou explicar fenômenos utilizando-se de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência. Compreender significa encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a elas, sem a submissão daqueles que são envolvidos pelos tentáculos do “Totalitarismo Invisível”, que os fazem complacentes e coniventes com as mais absurdas formas de atrocidades e falta de humanidade que as acompanha.
O que vemos hoje, é a repetição do “Mal Absoluto”, porque já não pode mais ser humanamente compreensível. A vitória totalitária pode coincidir com a destruição da humanidade, pois por onde passa mina a essência humana. Infelizmente, nos dias de hoje, num mundo muito mais tecnologicamente avançado, vemos o horror em tempo real e televisionado, como o que já foi presenciado fosse esquecido, uma espécie de oblívio ou amnesia coletiva, onde muitos se refugiam presos ao dogmatismo fundamentalista que os fazem acreditar que o extermínio de seres humanos é coisa banal e necessária para a evolução da espécie.
Como descreve o sociólogo Manuel Castells, um dos maiores pensadores da sociedade em rede: “as forças tecnológicas desencadeadas pela engenhosidade humana e a submissão coletiva ao autômato, têm fugido do controle de seus criadores.” Elas vêm se impondo, consideravelmente, à política social e econômica atual. Hoje os poderes proporcionados pela "Sociedade em Rede" se amalgamam com os interesses totalitários dos novos arquitetos da destruição.
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Referências:
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
quarta-feira, 20 de agosto de 2025
O MITO DA DIREITA
A linguagem utilizada e o discurso construídos pela extrema direita, no Brasil, especificamente, o que denominamos de bolsonarismo, são burros, mas, paradoxalmente, também, são ricos, sedutores, e têm sido, pelo menos, até aqui, muito eficientes, quanto aos objetivos que os conservadores pretendem alcançar. Aqueles que estão no topo têm o domínio da metalinguagem, ou seja, da construção de significados. No intuito de aumentar seu séquito, utilizam-se de artifícios populistas, principalmente, alicerçados pela religião, para encantar o oprimido e eternizar a sua fala. Direcionada pelo slogan “Deus, Pátria, Família”, a extrema direita constrói o seu discurso. O emissor da mensagem sabe das deficiências, do desconhecimento histórico e falta de pensamento crítico dos seus receptores. Assim, o oprimido é facilmente vislumbrado pelo mito da direita, que extrai a história, esvazia o seu sentido, sua razão e linearidade, nega a ciência e os conceitos, que desmistificariam e revelariam a falácia do seu discurso.
Nas midas digitais, controladas pelas Bigtechs, o autoritarismo encontrou seu lugar comum e o instrumento de disseminação de sua narrativa transvestida de democrata. A fala é tão poderosa, ao ponto de convencer milhares de pessoas, que no Brasil está sendo deflagrada uma ditadura de esquerda,
Para entender a conjuntura em que vivemos hoje é necessário conhecer os fundamentos que regem as práticas autoritárias dos extremistas.
É comum, as vítimas da lavagem cerebral, em conversas ou debates, ficarem exaltadas, cheias de evasivas, quando questionadas com relação a determinados conceitos que desconhecem. Por exemplo, pergunte a um bolsonarista as definições de lawfare, laissez-faire e sionismo, que são imprescindíveis para entender a ascensão da extrema direita e as barbáries cometidas por ela, no mundo atual. Neste artigo, não quero entrar nas particularidades e definições destes termos.
O meu objetivo, aqui, é deixar claro, que fica impossível de prosseguir uma discussão mais esclarecida e aprofundada se o interlocutor desconhecer e se negar a entender certas definições, na maioria das vezes, fingindo que nem está ouvindo. Nega-se, categoricamente, a buscar conhecimento, primordial para saber o que acontece no seu entorno, no mundo que o envolve, como se tivesse medo da verdade, como se ela fosse uma ameaça a mentira na qual acredita. Como tivesse que deixar a zona de conforto onde está acomodado. Nega-se a saber as premissas que o faz acreditar no mito da extrema direita.
Roland Barthes (1915 - 1980) um dos mais importantes teóricos literários de todos os tempos, ensaísta, filósofo, crítico e semiólogo francês, definiu, que estatisticamente, o mito se localiza na direita. É aí que ele é essencial, bem-alimentado, lustroso, expansivo, falador. Inventa-se continuamente.
Apodera-se de tudo: justiças, morais, estéticas, diplomacias, artes domésticas, transformando tudo isso em espetáculo. Alguma coisa em comum, com nosso ex-presidente Bolsonaro?
Para os comunicadores da direita o oprimido não é nada, possui apenas uma fala, a da emancipação. Agora eles, são tudo, suas falas são ricas, multiformes. Para eles o oprimido não é coisa alguma, pois não tem o domino da linguagem, da história, não são dialógicos, bem menos críticos. São subjugados e persuadidos pelo opressor que tem o domínio da fala. A linguagem do oprimido tem como objetivo a transformação, já a do opressor a dominação
A imagem é mais imperativa do que a escrita, impõe a significação de uma só vez, não é necessária a reflexão.
Por isso, a ascensão da extrema direita, não só no Brasil, deve as mídias digitais, o seu maior trunfo, com a disseminação de fake news, por meio de textos curtos, com imagens e vídeos que viralizam e convencem multidões.
Como dizia Comenius, bispo protestante da Igreja Morávia, educador, cientista e escritor tcheco no século XVII: “O homem é um animal bastante manso e divino se amansado por uma verdadeira disciplina, se não receber disciplina falsa, será o mais feroz dos animais que a terra pode produzir.”
Ricardo Bressan
terça-feira, 20 de maio de 2025
O MEME EGOÍSTA: A NATUREZA DA REPLICAÇÃO DOS MEMES
Segundo Richard Dawkins, etólogo, biólogo evolutivo, autor da obra “O Gene Egoista”, de 1976, e criador do conceito de memética, o meme é um código cultural que prevalece de acordo com a sua força de transmissão e assimilação dentro do organismo social.
Dawkins, de forma análoga, observa o processo de evolução cultural, com base na teoria da evolução de Darwin: um meme seria como um gene, ou seja, sobrevive aquele que melhor se adapta ao meio. Assim, como o gene, ele mantém sua capacidade ou força de persuasão, até ser eliminado, ou superado, por um novo meme.
Transpondo esse conceito para os dias de hoje, principalmente, ao que se refere as fake news, podemos inferir: os memes verticalizados, emitidos pelas organizações de poder, contêm os códigos culturais e prevalecem, conduzindo soberanos a conduta social, devida a sua força, perante a vulnerabilidade dos usuários das redes sociais, que se defrontam, diariamente, com uma infinidade de memes ou informações, que se formam dentro do ambiente das mídias digitais, num embate constante com o automatismo da replicação egoísta ou verticalizada. Ele descreve, os seres humanos, como veículos e replicadores de genes (porção do DNA capaz de produzir um efeito no organismo que seja hereditário e possa ser alvo da seleção natural) e de memes, que se replicam e sobrevivem de forma semelhante aos genes, através de um processo de seleção e competitividade. Segundo ele, somos veículos, mas não necessariamente serviçais, pois podemos desafiar os memes egoístas que receptamos, e que são responsáveis pela nossa doutrinação. Podemos estimular e ensinar o altruísmo: “somos construídos como máquinas de genes e educados como máquinas de memes, mas temos o poder de nos revoltar contra os seus criadores. Somos os únicos na Terra, que podemos nos rebelar contra a tirania dos replicadores egoístas”. Para Dawkins, uma das razões para o grande apelo exercido pela teoria da seleção de grupo, talvez seja o fato de ela se afinar completamente com os ideais morais e políticos partilhados pela maioria de nós. Como indivíduos, não raro, nos comportamos de forma egoísta (identidade). Nos momentos idealistas reverenciamos e admiramos aqueles que colocam o bem-estar dos outros em primeiro lugar (imagem). Segundo o conceito de Dawkins, devemos lembrar que a evolução dos memes não procede necessariamente pela produção das notícias falsas, mas apenas no exclusivo interesse dos algoritmos que selecionam a informação de acordo com as nossas preferências. É por esse motivo, que tanto os memes, quanto os genes, são descritos como “egoístas”. Os replicadores (pessoas, grupos, organizações, sociedade organizada) são egoístas no sentido de seus hedonismos e peculiaridades. No caso dos memes, eles nos usarão para que possam ser copiados e permanecerão aqueles com maior força de persuasão/impacto, dentro da sociedade, dependentes de estratégias e projetos bem definidos, que se interessam pelos efeitos sobre nós.
Poderíamos mudar esta configuração e mecânica se nos atentássemos a natureza da criação dessas informações, apurando e verificando a fonte de origem das emissões.
Contrariando a funcionalidade da produção aleatória, conseguiríamos quebrar o seu funcionamento, doutrinando os algoritmos de acordo com a transparência e credibilidade das nossas exigências. Sendo assim, interromperíamos a viralização e disseminação de conteúdos de origem duvidosa, fazendo com que os algoritmos obedecessem às nossas determinações, sendo conduzidos, em função da credibilidade e transparência, com que selecionaríamos os produtores da verdade factual.
terça-feira, 4 de março de 2025
FELIZMENTE ANORA É O FILME DO ANO, PARA OS BONS E MAUS ENTENDEDORES
É de uma ignorância e injustiça, sem tamanho, os ataques que estão desferindo à premiação do Oscar, contra o filme e atuação de Mikey Madison, em Anora. O longa foi vencedor da Palma de Ouro, em Cannes. Madison já havia ganhado o Bafta e o Independent Spirit Award de Melhor Performance Principal. Nas duas ocasiões, a atriz desbancou as suas concorrentes, entre elas, Demi Moore, e ninguém disse nada. Fernanda Torres, antes da premiação, já tinha se pronunciado, quanto a atuação da jovem atriz: “Mikey Madison. Quem viu Anora aqui? Tem que ver. Essa mulher tá incrível! INCRÍVEL!”
Na maior celebração do cinema mundial, alguns resolveram atacar a atriz de forma misógina, também, acusando a Academia de ser etarista e de oprimir as mulheres de meia idade. Alguns até disseram que a obra de Sean Baker é ruim e machista, sendo que, para os bons entendedores é o contrário.
Como disse PH Santos, grande comunicador e crítico de cinema: “deixaram de tratar arte como arte, para tratá-la como uma corrida de cavalos”. O Oscar, como outros eventos cinematográficos, é uma celebração, não uma competição. Assisti aos filmes. Achei a atuação de Madison tão boa, quanto as da Fernanda e de Moore. A Academia seguiu uma progressão. Uma obra que levou os prêmios de melhor roteiro, direção, edição e filme, com certeza tinha que ter o primor de uma atuação impecável. E isso não faltou a Mikey Madison. Todos os prêmios recebidos por Anora foram merecidos. Ele ter ganhado o Oscar, fala muita coisa. Fala sobre um cinema que a gente precisa aprender a respeitar mais, que é o cinema independente. Ver um longa de 6 milhões de dólares ganhar de outros multimilionários, é ver que se valorizou a arte, ao invés, do mero entretenimento.
Precisamos parar com essa ideia de que um filme é grande pelo seu orçamento.
Quem ganhou foi Anora, lindo na sua simplicidade e contundente na sua complexidade. Trataram a celebração como uma competição de futebol, onde vemos todos os tipos de violência, direcionados ao adversário, de xingamentos racistas e xenofóbicos à violência gratuita.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2025
EMILIA PÉREZ, UMA FANTÁSTICA OBRA CINEMATOGRÁFICA, OU UM GRANDE FIASCO DISCRIMINATÓRIO E DEPRECIATIVO?
O filme musical Emília Pérez, ópera dividida em quatro atos, tem causado polêmica, principalmente, por ser uma obra europeia, em língua espanhola, dirigida por Jacques Audiard, cineasta francês, com atores em sua maioria americanos, latino-americanos e espanhóis. Das quatro atrizes, que protagonizam o longa, só Adriana Paz é mexicana. Além disso, o cenário foi reproduzido em estúdio nos arredores de Paris, com algumas externas noturnas, no México, onde se passa a história ficcional.
O fato de um filme, contando uma história mexicana, mesmo que fictícia, representar a França nos festivais de cinema, pode parecer controverso, mas faz parte da decisão criativa do cineasta, que se inspirou no romance ficcional do francês Boris Razon de 2018, Écoute, que é ambientado no país da América do Norte.
O cinema é arte, porém também indústria, que como qualquer outra, segue os ditames comerciais e mercadológicos. Um longa, para ter uma grande projeção, como teve Emília Pérez, não dependeu somente da sua competência artística, mas, também, do marketing e do investimento de campanha. Talvez o diretor não tenha se aprofundado tanto, para tratar de um tema sensível, como a transexualidade, a violência criminal e o desaparecimento massivo de pessoas, pois se trata de ficção e não fatos reais. Audiard foi, também, criticado por estereotipar as transsexuais e banalizar a violência no país, responsável por 30 mil assassinatos anuais e mais de 100 mil pessoas desaparecidas, em sua maioria vítimas do narcotráfico.
Com tudo isso, não se pode dizer, com todas as letras, que seja um filme transfóbico, preconceituoso, tendencioso ou sensacionalista, como alguns pensadores, jornalistas e ativistas da comunidade LGBTQIA+ acreditam ser.
Jacques Audiard é um dos maiores e mais respeitados cineastas do cinema francês. Ele tem em seu currículo grandes filmes, todos falam de temas pertinentes a sociedade, como desigualdade, misoginia e xenofobia, principalmente, as que envolvem imigrantes ilegais. É improvável que um artista da categoria de Audiard, conhecedor das desigualdades e da contundência com que elas assolam as minorias, tenha produzido uma película que desumaniza uma sociedade desfavorecida como a da população do México.
Inclusive três de seus filmes: Ferrugem e Osso (2012), Dheepan: O Refúgio (2015) e Paris 13º Distrito tratam de assuntos de caráter social. Os dois primeiros, especificamente, são relacionados àqueles que migram de suas regiões de origem e encontram as dificuldades de imigrantes, em sua maioria ilegais. Já o terceiro é um filme com temática LGBTQIA+ (ou LGBTQIAPN+), para ser mais exato.
A escolha do casting de Emília Borges, foi o maior alvo dos críticos, que alegam ser absurdo um filme que fala sobre o México (vale ressaltar, um Mexico ficcional), não ter como personagens principais, mexicanos, e sim americanos, latino-americanos e europeus. Comercialmente, provavelmente, ele tenha selecionado o elenco com base em seu apelo comercial. Zoe Saldaña é americana de ascendência porto-riquenha e dominicana, Selena Gomez também natural dos EUA é filha de pai mexicano e Adriana Paz é a única que nasceu no Mexico, mas iniciou sua carreira artística na Espanha. Já a atriz trans Karla Sofia Gascón é espanhola, mas a sua carreira despontou a partir de 2009 no México nas séries Corazón Salvage (2009) e El Señor de los Cielos (2013). Em 2013 fez sua estreia no cinema com o sucesso Los Nobles – Quando os Ricos Quebram a Cara. Das quatro atrizes, duas, Saldaña e Gomez, são estrelas de Hollywood. Sendo assim, a escolha do elenco seguiu, com finalidade comercial, em busca do reconhecimento internacional, principalmente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (Academy of Motion Picture Arts and Sciences). Enfim, a seleção do elenco dificilmente tenha seguido um padrão discriminatório e preconceituoso, e, sim, a experiência e a projeção comercial de cada atriz.
“Selena e Zoé lhe dão uma dimensão comercial, não há como negar”, disse Audiard em Bogotá, quando questionado pela Agence France-Presse (AFP) em uma entrevista sobre os poucos mexicanos no elenco. Além disso, a escolha de Karla como protagonista foi elogiada pela crítica especializada. Fora a excelente atuação, levou-se em conta, o fato de ela ser uma mulher trans e não uma pessoa cisgênero sendo escalada para interpretar uma personagem trans. Quando isso acontece, há muitas críticas, como no fim do ano passado, na segunda temporada da série sul-coreana Round 6.
Outro apelo, que pode parecer coerente, mas ao mesmo tempo descabido, é o fato de ser uma película que dá prerrogativas para transfobia. Tanto Karla, quanto Audiard, que recentemente vieram ao Brasil para promover o longa, já se pronunciaram dizendo que se trata de uma fábula ou opereta ficcional e que, portanto, não retrata realisticamente as condições sociais da nação mexicana. O que se vê e o que se ouve de jornalistas, de algumas organizações da comunidade LGBTQIA+, e, também, de incautos, principalmente, nas redes sociais, meio por onde viralizou as críticas, são análises sociológicas e antropológicas, que afirmam o caráter estereotipado da mulher trans, correlacionando-a ao submundo. A obra narra a história de uma narcotraficante que quer se redimir da vida de crimes, e, finalmente, fazer a cirurgia de redesignação sexual. Os críticos da obra interpretaram a transição da personagem, como mera tentativa de mudança de identidade, ou disfarce para escapar do passado de chefe do tráfico. Em defesa Audiard afirmou que sua protagonista sempre desejou ser mulher, mesmo, quando, era chefe do narcotráfico.
Karla, quando leu o roteiro comentou das suas primeiras impressões sobre a narrativa, pedindo que o roteiro tivesse mais nuances ao representar a experiência trans. Hoje, ela é uma das maiores defensoras do filme. Segundo ela: “infelizmente, as redes sociais se tornaram, para muitos, um instrumento a serviço da escuridão, onde imperam os insultos, a violência, o ódio, a mentira e o assédio. Tem muito blogueiro que se acha especialista e muitos gatos que acham que sabem de cinema, quando o que sabem é arranhar. Então, o que posso dizer? Quem não gostar, que vá ver outra coisa no cinema. A maioria do público sai emocionadíssima em todos os países."
As reprovações mais contundentes vieram da ativista Artemisa Belmonte: “O filme banaliza o problema dos desaparecidos no México”, lançando uma petição no site change.org, para se opor ao lançamento do filme (11.100 assinaturas desde 9 de janeiro), e do escritor Jorge Volpi no diário El País: “É um dos filmes mais grosseiros e enganosos do século XXI”, escreveu ele. Volpi também destacou o “terrível” sotaque de Selena Gómez, irritante para a fibra nacionalista dos mexicanos. A partir daí, disseminaram-se, equivocadamente, nas redes sociais um número descabido de ódio à produção e à atriz Karla Sofia Gascón. Em entrevista, ela pede ajuda a Fernanda Torres, que juntas concorrem ao Oscar de melhor atriz: “Fernanda, por favor, um abraço. Te amo muito. Me ajuda com essa galera." O pedido, realizado em entrevista ao G1, durante passagem pelo Brasil, para promover seu filme, é feito com o bom humor de uma artista que vive o melhor momento de sua carreira, apesar dos ataques. Fernanda Torres se pronunciou em defesa de Karla: “Nesse ano no Oscar, as escolhas que eles fizeram para atriz são tão especiais, cada uma a sua maneira, todo mundo merece. Todo mundo ganhou, não vamos tratar ninguém mal pelo amor de Deus. Eu sou para sempre grata à Sofia Gascón, ela está maravilhosa no Emilia Pérez. Demi Moore me mandou uma mensagem pessoal antes do Globo de Ouro, uma mulher de um carinho [...] Cinthya Erivo, meu Deus, aquela deusa, indicada pela segunda vez. Mikey Madison! Quem viu Anora aqui? Tem que ver, essa mulher está incrível! Então o que eu quero dizer é que todo mundo ali merece, e merece o carinho da gente, não vamos alimentar ódio. E quero dizer: Karla Sofía Gascón, te amo para sempre. Uma mulher generosa, talentosa, que merece da gente todo nosso carinho", disse a atriz.
Assim como no filme, Karla tem uma família, sua esposa, Marisa, que conheceu aos 19 anos e a filha do casal, atualmente com 13 anos. Em maio de 2024, ela ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes por seu papel no filme. Ela foi a primeira mulher trans a ser reconhecida na história do festival, e dedicou o prêmio a todas as pessoas que passaram pela transição de gênero e que, como ela, "sofrem ódio todos os dias".
O longa também foi vencedor do Globo de Ouro, desbancando o brasileiro Ainda Estou Aqui. Em contrapartida, Fernanda Torres levou o Globo de Ouro de melhor atriz.
Apesar de todas as críticas negativas, alguns profissionais da classe saíram em defesa do longa, como o cineasta canadense Denis Villeneuve, diretor de Duna e Duna 2, e a atriz americana Meryl Streep, que é uma ativista dos direitos humanos. Eles elogiaram a originalidade e a coragem do filme. Guillermo del Toro, diretor mexicano ganhador de três Oscars, disse que o filme é lindo. Para ele, Jacques Audiard é um dos cineastas mais incríveis da atualidade.
A trilha sonora, composta por Camille e Clément Ducol, foi igualmente elogiada pela crítica, principalmente pela inventividade. As coreografias e arranjos pouco pomposos, mas orgânicos, também chamaram a atenção.
Outro defensor foi o crítico do jornal Milenio, Álvaro Cueva. “Se os grandes mestres do cinema, como Federico Fellini e Luis Buñuel, estivessem vivos, esse é o tipo de filme que eles fariam”, resumiu ele.
Para todos os efeitos, o filme já provou ao que veio, com indicações nos principais festivais de cinema do mundo, recebeu premiações em alguns deles, sendo um dos mais indicados ao Oscar este ano: 13 estatuetas. As críticas, que depreciam a obra, deveriam ser reavaliadas, pensando no valor que elas podem ter para a comunidade LGBTQIA+. Elas podem ser consideradas, por alguns, exacerbadas e prejudiciais, para esta minoria, que vem sendo muito bem representada, não por Emilia Pérez, e, sim, pela primeira atriz trans a concorrer ao Oscar: Karla Sofia Gascón.
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OBSERVAÇÃO IMPORTANTE:
Este artigo foi escrito, quando a crise afetava, somente, o filme Emília Pérez e não a atriz principal do longa, KARLA Sofia Gascón, por estar envolvida num escândalo de racismo e xenofobia, por conta de declarações que foram resgatadas nas suas redes sociais. Portanto, ela foi afastada da campanha de marketing pela produção da obra. Quem fica na linha de frente da divulgação é a atriz coadjuvante Zoë Saldaña.
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Fontes:
SOTO, Cesar. Alvo de ódio de brasileiros, Karla Sofía Gascón, de 'Emilia Pérez', pede a Fernanda Torres: 'Me ajuda com essa galera'. G1 POP & ARTE. Cinema. 24 de janeiro de 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/google/amp/pop-arte/cinema/noticia/2025/01/24/alvo-de-odio-de-brasileiros-karla-sofia-gascon-de-emilia-perez-pede-a-fernanda-torres-me-ajuda-com-essa-galera.ghtml
Acesso em: 26 de janeiro de 2025.
PINTO, Flávio. “Emilia Perez”, filme com Selena Gomez, vai representar a França no Oscar 2025. CNN Brasil. 19 de setembro de 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/emilia-perez-filme-com-selena-gomez-vai-representar-a-franca-no-oscar-2025/
Acesso em: 26 de janeiro de 2025.
Quem é Karla Sofía Gascón, primeira atriz trans indicada ao Oscar. BBC NEWS Brasil. São Paulo, 23 janeiro de 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cvg9wlz1v39o.amp
Acesso em: 26 de janeiro de 2025.
BRAULIO, Lorentz. Emilia Pérez, ame ou odeie: como rival de Ainda Estou Aqui no Oscar foi de queridinho da crítica a filme mais zoado do ano. G1 POP & ARTE. Cinema. 16 de janeiro de 2025.
Disponível em: https://g1.globo.com/google/amp/pop-arte/cinema/noticia/2025/01/16/emilia-perez-ame-ou-odeie-como-rival-de-ainda-estou-aqui-no-oscar-foi-de-queridinho-da-critica-a-filme-mais-zoado-do-ano.ghtml
Acesso em: 28 de janeiro de 2025.
quarta-feira, 22 de janeiro de 2025
O GESTO DE MUSK E A EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS DE TRUMP
Intencionalmente, ou não, o gesto “sieg heil”, ou saudação nazista de Elon Musk, na cerimônia de posse do presidente dos EUA, Donald Trump, foi celebrado por neonazistas e extremistas de direita nas redes sociais. O mais grave no simbolismo é o que ele representa efetivamente.
As “políticas” de imigração, que começam a ser anunciadas por Trump, seguem conceitos semelhantes aos de eugenia, criados pelo inglês Francis Galton, no final do século XIX.
No período entre Guerras, de 1918 a 1939, movimentos eugenistas, inclusive apoiados por intelectuais e pensadores de renome, se espalharam por vários países da Europa, da América, inclusive no Brasil.
Trump, no seu primeiro dia de mandato, assinou medida que proibe a naturalização automática de filhos de imigrantes ilegais em território americano. Governadores entraram na Justiça para tentar derrubá-la. Algumas semelhanças, entre as características descritas abaixo, com as políticas de imigração anunciadas por ele, devem ser só uma mera coincidência, ou pura paranoia, não é mesmo?
Três características da eugenia:
1. No início do século 20, os defensores da eugenia culpavam a biologia por problemas sociais como pobreza e criminalidade. Acreditavam que essas características ruins eram passadas de pais para filhos.
2. A eugenia estabelecia a diferenciação entre dois grupos: o grupo das pessoas “adequadas” e o das “inadequadas”. Os próprios defensores desta teoria definiam quem se encaixava em cada grupo.
3. Ela propunha medidas para “melhorar” a população. Também incentivava as pessoas “adequadas” a terem mais filhos, enquanto limitava a reprodução daquelas consideradas “inadequadas”. O objetivo era que, com essas medidas, a população em geral ficasse “mais forte e inteligente”.
Justificando, que as medidas populistas de natureza xenófoba, racista e preconceituosa são para o bem da nação, seus detentores, por meio de seus discursos e simbolismos, persuadem a sociedade, fazendo muitos acreditarem, que são meios efetivos, para resolver os problemas da desigualdade social. Isso só foi possível, por conta das novas tecnologias digitais, usadas como ferramentas de doutrinação e manipulação, nunca vistas na história da humanidade. De todas as mídias existentes, nenhuma delas é tão ameaçadora e destrutiva, como a digital, quando usada com objetivos espúrios, como tem sido feito pela comunicação dos populistas de extrema direita.
O que está acontecendo é um retrocesso gigantesco e genocida, que cidadãos, levados pelo conservadorismo e conceitos de extrema direita, apoiam, por não se darem conta, ou por não acreditarem na gravidade das suas consequências nefastas.
Fontes:
INVIVO/ Museu da Vida:
http://surl.li/vcbzrq
G1 MUNDO:
http://surl.li/xmxgev
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