quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

A relação entre as imagens de Airton Senna e Fernanda Torres

Airton Senna, tricampeão mundial de Fórmula 1, morto em maio de 1994, teve sua primeira aparição no grande prêmio do Brasil, no Autódromo de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, no início dos anos oitenta. Em 15 de janeiro de 85, o Brasil vivenciava a transição democrática, com a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, com 480 votos, contra 180 do candidato do PDS, Paulo Maluf. Com o falecimento de Tancredo, em 21 de abril de 85, assumiu a presidência o até então vice José Sarney. Em 28 de fevereiro de 86, Sarney anunciou o plano Cruzado, com o Ministro da Fazenda Dilson Funaro, com o objetivo de combater a inflação, que chegava a 517%. O plano de estabilização inicialmente bem-sucedido, pois a inflação caiu consideravelmente, fracassou no final de 86, chegando no primeiro bimestre de 87 a 337%. Mesmo que parte da população brasileira tenha encontrado meios para sobreviver e manter o consumo básico, durante a inflação galopante, a realidade para a maioria era de extrema pobreza. A recém extinta ditadura militar maquiava ou manipulava pesquisas que quantificassem o tamanho da fome.
"Dados do IBGE, coletados nos anos de 1974 e 1975, apontavam que 67% da população passava fome. Em 83, o documento Genocídio no Nordeste estimava a morte de 700 mil pessoas na região por causa da falta de comida. A carestia impulsionava a organização de movimentos populares, mas também fazia crescer reações desesperadas entre as famílias." Neste contexto, transição democrática, com elevadíssima taxa de fome e pobreza, eis que surge Airton Senna, personalidade que com os discursos e simbolismos midiáticos, transformou-se em herói brasileiro, com a responsabilidade de suprir a nação daquilo que ela mais necessitava: representação. Em todas as manhãs de domingo, o povo deixava as suas peculiaridades mais bizarras de lado, para acompanhar o seu grande ídolo. A sociedade do espetáculo, obra de Guy Debord, mostrava-se em sua completude. As cores de nossa bandeira representavam o espetáculo, e não as máculas de um país sofrido, causadas por interesses políticos e econômicos espúrios. Sequestros e assassinatos de um passado recente eram velados com lágrimas de contentamento, para se esquecer das insuficiências de um país empobrecido. Fernanda Torres, com a conquista do Globo de Ouro representa e simboliza, o contrário, aquilo que camufla e esconde o passado, aquilo que é negligenciado pelas luzes do grande show da mídia. O filme Ainda Estou Aqui, protagonizado por Fernanda, é uma pancada, um marco no cinema brasileiro, de grande importância histórica e política para o nosso país. Esclarece a tantos desinformados, e a muitos que não vivenciaram o regime, a gravidade e as consequências de uma ditadura, que perduram até hoje. Mesmo vivendo num regime democrático, os recentes e atuais acontecimentos, nos mostram a ascensão da extrema direita e que os ideais conservadores voltaram a fazer parte da nossa realidade, mesmo depois de tanto atraso, sofrimento, injustiça e indignação. Como após 21 anos de ditadura, ainda podemos ter no país adeptos e simpatizantes da extrema direita? Claro que, os mais esclarecidos sabem que os discursos e significados mentirosos, porém muito bem direcionados pelos conservadores nas mídias digitais, por inércia e falta de regulamentações, são os responsáveis, com a ajuda dos algoritmos, pelo poder de convencimento e engajamento de milhares de cidadãos. Como dito por Gilberto Maringoni da revista Cult: "ganhou Fernanda Torres, ganhamos todos nós, em tempos de desesperança. Ganhou a atriz excepcional que resgata nesta obra prima as denúncias de arbítrio, sequestros e assassinatos. Ganhou Marcelo Rubens Paiva. Ganharam os protagonistas e o diretor de um filme profundamente nacional, que mostra nossas mazelas, nossas disputas e as sombras que cobrem o presente.” A imagem de Airton Senna obliterava a visão da realidade, diluía a gravidade em que vivia o povo brasileiro, na homogeneidade do espetáculo. Fernanda, com a sua atuação orientada pela narrativa, esclarece e critica com contundência, a gravidade da negligência e do esquecimento. Com a desmistificação dos símbolos, fechamos as cortinas e conseguimos ter um maior discernimento daquilo que é dissimulado pela tendenciosidade e sensacionalismo do espetáculo. ________________________________________________ Fonte: LACERDA, Nara. Como era viver no Brasil da inflação descontrolada dos anos de 1980. Brasil de Fato. São Paulo, 18 de agosto de 2022. Disponível em: Acesso em: 07 de janeiro de 2025.